O direito de se defender

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/19540-o-direito-de-se-defender.shtml

A Folha, no último dia 5, publica reflexões de Wellington Cabral Saraiva (“Jacques Chirac seria Condenado no Brasil?”), que é membro do Ministério Público da União, representando-o no Conselho Nacional de Justiça.

Em meio à discussão sobre o órgão incumbido do controle externo da magistratura, com a interpretação que o STF acaba de dar em liminar sobre seus limites de atuação, o artigo merece objeção, diante de nossa realidade judiciária.

A Constituição e os códigos penal e de processo penal não são diplomas de má qualidade técnica. Ao contrário. Da lei maior do país tem-se a expressão “Constituição cidadã”. O Código de Processo Penal foi elaborado em período ditatorial e longe está de ser liberal. O mesmo ocorre com o Código Penal, que nada tem de leniente e foi alterado em 1984, sob inspiração da lei alemã.

O manejo da legislação pressupõe boa ação dos protagonistas: bons juízes, promotores, advogados e policiais, reverentes à letra e ao espírito da lei. Realizá-la nunca será condenar a qualquer preço, com prejulgamentos e manifestações opinativas. A não ser assim, que se entreguem os réus aos julgamentos em praça pública, para que a turba promova a execração, enfim, a antítese do devido processo legal.

O que se lê no texto publicado arranha a Justiça de nosso país e nossas leis penais. Ao habeas corpus, tão diminuído no artigo, foram feitas críticas candentes. Também aos tribunais que os julgam, como se esse remédio jurídico não fosse a marca da civilização a separar o país de ontem -quando tal garantia foi suprimida, pelo AI-5 de 1968-, do país de hoje.

Sobre o habeas corpus, destaque-se que o conselheiro comete a indelicadeza de dizer que os advogados juntam “só as provas que interessam”. Nada mais inexato: em tais julgamentos não são examinadas provas. Ao contrário, exige-se a demonstração de abuso de poder ou da ilegalidade. Se a violência logo é reparada, nada mais apropriado.

Não é, tampouco, exato afirmar-se a existência de quatro instâncias criminais. A ação penal é decidida em primeiro grau, por um juiz que julga sozinho. Contra a sentença cabe um único recurso de amplo espectro, o de apelação. Os outros recursos têm admissibilidade restrita: exige-se demonstração de violação à lei federal ou de infringência à Constituição.

Da acusação contra Jacques Chirac -fosse possível sua tramitação aqui-, o mínimo a se dizer é que a ele se garantiria, ou deveria se garantir, o devido processo legal e o amplo direito de defesa. Um julgamento jurídico e não político.

Não podemos afirmar, sem conhecer o processo, que a decisão tomada tenha sido certa ou errada, severa ou generosa. No entanto, no artigo comentado, fez-se exaltação à punição. Criticou-se nossa legislação sobre prescrição. Afirmou-se que aqui nem haveria processo.

Mas fazer justiça não é condenar, é respeitar-se o devido processo legal e o direito de defesa.

Anote-se que os fatos atribuídos ao ex-presidente francês teriam ocorrido em 1995 e a ação penal só foi iniciada em 2009. Catorze anos depois! Veio a calorosa censura do autor ao salientar que no Brasil nem processo haveria. Talvez sim, talvez não. Não só aqui, mas também em muitos outros países civilizados, submissos ao império da lei.

O que se pode dizer é que Chirac, no Brasil, teria o direito de se defender, sem que se estabelecesse de antemão a inexorabilidade de uma condenação, afastando-se a sempre medíocre satisfação de apetites acusatórios, nem sempre equilibrados, nem sempre justos. Até porque, não raro, o que se busca nos casos de repercussão, atropelando-se direitos, é o estrelato das luzes midiáticas.