As Mazelas do Cárcere
Fonte: http://www.iabnacional.org.br/IMG/pdf/doc-5571.pdf
A questão penitenciária é dramática não só no Brasil.
Se fizermos um levantamento no mundo sobre o assunto, que é polêmico ao extremo, chegaremos à conclusão de que o encarceramento de pessoas sempre foi algo muito problemático. Não há dúvida de que seres humanos não vieram ao mundo para serem tratados como animais, enjaulados, trancafiados, acorrentados.
Quando falamos em prisões, quase sempre nos recordamos de alguns filmes e livros, os quais nos lançam de volta ao tempo, trazendo-nos a lembrança e o sofrimento de alguns personagens, que tiveram seus destinos marcados para o resto de suas vidas, após experiências – sempre lamentáveis – que tiveram com o cárcere.
Sobre o tema, vale referir, de início, uma das mais famosas obras da literatura mundial, acerca da saga de Papillon, que preso e condenado à degradação na Ilha do Diabo, Guiana Francesa, por um crime que não teria cometido, conseguiu fugir depois de várias tentativas, tendo seu sofrimento e sua façanha se transformado em filme, estrelado por Steve McQueen e Dustin Hoffman. Tal presídio veio a ser fechado pelas autoridades francesas, depois de serem narradas ao mundo as diversas atrocidades lá cometidas.
Podemos lembrar, também, o filme “O Expresso da Meia Noite”, que conta a história de um jovem estudante americano, o qual, retornando de viagem à Turquia, decide trazer consigo, presos ao próprio corpo, alguns pacotes de haxixe. O plano, contudo, acabou não dando certo e ele é preso, tendo sua vida se transformado em um inferno a partir desse momento. Brutalmente espancado e jogado numa imunda e infecta prisão, quando esperava ser libertado é levado a novo julgamento com efeito retroativo – segundo as leis daquele país –, que o condena a uma longa pena. Este filme teve seu lançamento em 1978, com direção de Alan Parker, tendo como atores principais Brad Davis, Irene Miracle, Bo Hopkins e Paolo Bonacelli.
Ainda na literatura mundial, poderíamos declinar vários outros personagens que marcaram época com suas aventuras e desventuras quando submetidos às agruras de uma prisão. Entre eles, cite-se Dostoievski, um dos maiores escritores de todos os tempos, que julgado em abril de 1849, foi condenado – juntamente com seus companheiros, acusados de conspiração – a morrer diante de um pelotão de fuzilamento. Sua pena, no entanto, foi transformada, por Nicolau I, a quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria, onde escreveu suas “Recordações da Casa dos Mortos”, livro cuja leitura é fundamental para todos os que se preocupam com as misérias e torturas que podem ser impostas a um ser humano em uma prisão, seja na Sibéria, seja no Brasil, seja onde for.
Poderíamos lembrar, ainda, o caso Dreyfus, um dos maiores erros judiciários de que se tem notícia, um verdadeiro escândalo político que dividiu a França por muitos anos, no final do século XIX. Alfred Dreyfus, oficial de artilharia do exército francês, de religião judaica, foi destinatário, à época, de acusação esdrúxula, sem qualquer fundamentação jurídica, que o levou a ser condenado à prisão perpétua na famigerada Ilha do Diabo. Este processo, realizado a portas fechadas, gerou grande comoção no povo francês, principalmente depois que Émile Zola, o grande escritor, indignado com a manutenção da sentença, num segundo julgamento, resolveu defender o acusado através de artigos publicados nos principais jornais franceses, entre eles o famoso “J ́Accuse” (“Eu Acuso”), uma peça de defesa que dividiu o país. O drama do capitão Dreyfus tornou-se, ainda, enredo de filme, na década de 30. Após cinco anos na cadeia, Dreyfus foi posto em liberdade, reconhecida sua inocência, o que não impediu seu afastamento da carreira militar, inteiramente abalada com tais acontecimentos.
No Brasil, o caso de maior comoção é o dos Irmãos Naves, quiçá o maior erro judiciário de que se tem notícia nos anais da Justiça brasileira. Joaquim e Sebastião Naves foram condenados, em 1937, pelo latrocínio de Benedito Pereira Caetano, cujo corpo jamais havia sido encontrado. Após cumprirem mais de oito anos de pena, em regime de reclusão, foram beneficiados pelo livramento condicional, em 1946. Joaquim morre em 1948, sofrendo de penosa doença, sem jamais ter provado sua inocência. Anos após, em 1952, o “defunto” é encontrado e, deparando-se com Sebastião, implora, aos prantos, que não o mate. Ele mal esperava ser abraçado em seguida, ouvindo: “Graças a Deus te encontrei para provar minha inocência. Ninguém te quer matar, vem pra cidade, para o povo ver que você está vivo e que eu sou inocente”. Mazelas da justiça humana…
E o que dizer de Nelson Mandela, que esteve preso por quase trinta anos na África do Sul, lutando, sempre, pela liberdade daquele povo, daquela gente sofrida e esmagada por um regime político-ideológico racista, contra o qual deu grande parte de sua vida. Ganhador do Premio Nobel da Paz, tornou-se para todos nós exemplo grandioso a ser seguido, por muitas gerações, um homem provido de “honestidade, sinceridade, simplicidade, humildade, generosidade pura, ausência de vaidade, disposição para ajudar os outros – qualidades facilmente alcançáveis por todo indivíduo – são os fundamentos da vida espiritual…”. Esses conceitos eram o que Mandela vislumbrava para todo ser humano, e da cadeia ele os tornou perenes em sua alma. (Trecho tirado de um dos últimos livros de Nelson Mandela): “Conversas que tive comigo”.
Voltando ao Brasil, não há como esquecer Graciliano Ramos, que também experimentou as agruras da prisão. Suas “Memórias do Cárcere”, de publicação póstuma (1953), não chegou a ser concluída, faltando o capítulo final, o que não impediu fossem suas experiências transformadas em filme, dirigido por Nelson Pereira dos Santos, onde Graciliano é interpretado por Carlos Vereza e sua esposa, Heloisa – incansável em suas visitas na prisão –, por Glória Pires.
Naquela época se prendiam pessoas, famosas ou não, por conta de suas posições político- ideológicas, sendo tais prisões muitas vezes ilegais, arbitrarias e marcadas pelo exagerado poder punitivo do Estado, que acusava Graciliano de ter se envolvido com a denominada “Intentona Comunista”, em 1935.
Na obra, Graciliano narra fatos que vivenciou, como a imundice das cadeias e a fome, chegando a ficar sem alimentar-se por vários dias, assim como as pressões psicológicas a que os presos, já naquele tempo, sofriam de seus algozes, que buscavam culpados para aplacar suas iras e suas decepções com a vida. Descreve também a companhia dos mais variados tipos encontrados entre os presos políticos e, entre outros acontecimentos, narra a entrega de Olga Benário para a Gestapo, polícia política da Alemanha de Hitler, menciona as sessões de tortura aplicadas a Rodolfo Ghioldi e relata, ainda, um encontro com Epifânio Guilhermino, único sujeito a matar alguém no levante comunista ocorrido no Rio Grande do Norte.
O tempo mudou, prisões e prisioneiros também mudaram, mas o sofrimento e a angústia do encarceramento continuam iguais.
Hoje prende-se empresários, pessoas ligadas ao mercado de capitais, banqueiros, donos de bares e restaurantes onde estão instaladas máquinas caça-níqueis, advogados, juízes, promotores, e policiais. A incontida vontade de colocar alguém atrás das grades é cada vez maior e o estado policial parece querer se instalar de vez no país.
O Poder Judiciário parece se confundir com o órgão de acusação, cada vez mais raivoso ao pedir a condenação de alguém, almejando quantidade cada vez maior de pena, não se preocupando mais em fazer justiça, mas em promover espécie de vingança, o que se acentua ainda mais quando o crime é atribuído a alguém capaz de atrair a atenção dos holofotes ou aumentar a venda de jornais, como grande manchete nos principais diários do País. Querem alguns, agora, por iniciativa de certos “políticos” – que certamente nunca visitaram um estabelecimento prisional –, extinguir o que se convencionou chamar de prisão especial (prevista no art. 295 do Código de Processo Penal), que assegura àqueles que têm curso superior ou aos que estão expressamente indicados no texto do artigo acima citado serem recolhidos em quartéis ou em locais apropriados às suas condições pessoais, onde permanecerão à disposição das autoridades competentes, quando presos antes de condenação definitiva. A norma, que deveria valer para toda e qualquer prisão – e não apenas às tais prisões “especiais” –, na prática não encontra aplicação. Dignidade no ambiente carcerário, especial ou não, é uma utopia, que jamais se tornará realidade.
Em matéria publicada em “O Globo”, edição de 26 de março do corrente ano, o próprio Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Cezar Peluso, afirma e reconhece, com todas as letras, que nossos presídios são “masmorras medievais”. Muito provavelmente a maioria dos juízes e membros do Ministério Público que atuam na área criminal jamais entraram em uma penitenciária. Todos, principalmente os mais novos e recém-empossados, deveriam ser obrigados a uma visita a um desses verdadeiros depósitos de lixo humano que são os presídios brasileiros, para que, no exercício de seus cargos, reflitam sobre as conseqüências do encarceramento, ainda que provisório, nas vidas daqueles que serão presos e de suas famílias. A Constituição é clara: a liberdade é a regra, a prisão é a exceção e todos são presumidamente inocentes.
Prisões temporárias logo se transformam em preventivas. A finalidade das prisões provisórias, hoje em dia, parece-nos, é aplicar a pena antes mesmo do julgamento, dando-se satisfação a uma suposta “opinião pública”. Tudo em busca da condenação a qualquer preço, minimizando- se a importância do amplo direito de defesa. A Constituição é vilipendiada, rasgam-se seus artigos mais importantes, àqueles que protegem e dão segurança a qualquer cidadão. Tudo em nome de um “combate ao crime” e do “fim da impunidade”.
Além do mais, tudo é difícil no nosso sistema penal. Até a simples entrega de remédios, roupas e alimentos aos presos se tornam tarefas quase que inalcançáveis. Há uma vigilância quase opressiva. Mulheres, em especial, são tratadas de forma constrangedora e vexatória, sendo submetidas a uma revista quase semelhante a uma consulta ginecológica, antes de poderem se avistar com seus filhos, irmãos ou companheiros presos.
De outra parte, a ausência de perspectiva é a tônica. Nada se aprende no ambiente prisional, a não ser a se tornar um ser humano mais amargo. O trabalho também não é estimulado. Não se implementa qualquer projeto visando à instalação de fábricas ou oficinas no interior dos presídios, aproveitando a mão de obra dos internos, de modo a efetivamente preparar o preso para o seu retorno ao convívio em sociedade, de modo a minimizar o sofrimento daqueles que realmente queiram mudar o rumo da história de suas vidas. Há algum tempo havia na cidade de Niterói, Estado do Rio de Janeiro, no Presídio Vieira Ferreira Neto, uma fábrica de sapatos, dando emprego e ocupação àqueles que lá cumpriam suas penas, tirando-os da inércia e contribuindo para a recuperação. Este exemplo, porém, não foi seguido. A prisão, hoje, em regra, com parcas exceções, destrói mais do que corrige e em nada contribui para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e verdadeiramente humana.
Francisco de Assis Leite Campos – Advogado