“Advogado Criminal, Esse conhecido e Saudoso Evaristo de Moraes”

Em homenagem a um dos maiores advogados criminais de que já se teve notícia.

Por Nelio Roberto Seidl Machado

Desnecessário declinar a honra que representa para qualquer advogado falar em memória do grande Antônio Evaristo de Moraes Filho.

Em verdade, sua prematura ausência fez com que todos nós nos sentíssemos menos seguros, mais vulneráveis, sobretudo quando o direito penal vive um momento conturbado, com retrocessos que vêm se acumulando, mercê de nefasta influência de movimentos reacionários, com inspiração alienígena, notadamente a partir da visão dos que preconizam a lei e a ordem como referências mais relevantes para a organização da sociedade.

É evidente que a questão da criminalidade jamais será passível de solução a partir do direito penal, ou de seu rigorismo, ou da exacerbação punitiva, ou da satisfação aos apetites vorazes da mídia – que condena sem julgar – como diria, e o disse tantas vezes, o excepcional advogado.

Talvez ninguém tenha tido curriculum profissional, como advogado, que se assemelhasse ao de Antônio Evaristo de Moraes Filho, que a muitos defendeu, independentemente de maior ou menor fortuna, desvalidos ou poderosos, desde a tribuna do júri, que ocupou com maestria, a outras tantas – inclusive na Justiça Militar, escabinado que guarda alguma similitude com os colegiados populares, na medida em que leigos se ocupam da prestação jurisdicional, votando antes por consciência, e não em razão de papéis tais ou quais, teorias estas ou aquelas, conquanto importantes, sempre sucumbentes diante do cenário da vida, mais rico e empolgante do que a visão abstrata dimanante de elucubrações de gabinete.

Evaristo, como advogado, sempre serviu de exemplo, verdadeiro farol a iluminar o caminho de  colegas que chegaram depois, buscando seguir-lhe a passada, sempre firme e vigorosa, admirando-lhe o incomparável estilo; ele que escandia as sílabas, dando a cada palavra pronunciada vibração peculiar, atraindo, assim a atenção de todos que tiveram o privilégio de ouvi-lo na tribuna, que dominava como poucos, tendo presente grandes oradores que perpassaram a história.

Vem-me à lembrança – recordando-me da forma pela qual Evaristo advogava – a lição de Rui Barbosa, a dizer que o advogado não pode fazer de sua banca,  balcão, nem mercadejar com sua ciência, e tais postulados sempre foram observados em sua atividade diuturna, posta a advocacia nos seus mais elevados e nobilitantes patamares.

Evaristo de Moraes, como advogado, era um verdadeiro artista, um artífice, um ourives, um artesão. Sabia como poucos, quiçá como ninguém, identificar na causa entregue a seu lúcido patrocínio, o ponto decisivo, a nuance relevante para revelar o verdadeiro caminho no sentido de uma solução apropriada ao drama que sempre integra, de uma forma ou de outra, uma questão de natureza penal, com dor e sofrimento não apenas para o réu, mas para a vítima, para os familiares de um e de outra, senão para a própria sociedade. Esta, por sua vez, deve buscar uma solução sempre inteligente, e menos gravosa, para estabelecer o equilíbrio possível, diante de conduta capaz de ensejar o acionamento da arma mais drástica do arsenal jurídico, assim considerado o direito penal, pelo mestre de todos nós – Roberto Lyra.

Ao tempo da Justiça Militar –  cuja competência para apreciar crimes de natureza política resultou de um ato de exceção, a saber, o Ato Institucional n.º 2, de 1965 –,  certamente  todos imaginavam que nela fosse se repetir o massacre que foram os julgamentos pelo Tribunal de Segurança Nacional, à época do Estado Novo.

Provavelmente, o escopo da ditadura foi, à época, o de intimidar e atemorizar, confiando que viessem a prevalecer, numa justiça armada e fardada, simulações de julgamentos, farsas judiciárias.

Esqueceram-se, certamente, os que conceberam a estratégia que acaba de ser referida, da coragem dos advogados brasileiros, dentre os quais, é de justiça festejar Antônio Evaristo de Moraes Filho, cuja voz jamais se calou, a despeito da supressão de garantias – notadamente a partir de 13 de dezembro de 1968, quando editado o odioso Ato Institucional nº 5.

Recordo-me, nesse momento, de muitas de suas defesas, épicas, inesquecíveis e incomparáveis.

Numa delas, Evaristo citava Carrara, dizendo da dificuldade para definir o crime político, eis que o perseguido de ontem, na história das gentes, muitas vezes se convola no líder do amanhã; veja-se Mandela, e tantos outros mais.

Prosseguia o notável advogado, na defesa ora enfatizada, tendo presente o que à época se convencionou chamar, na fala dos economistas, de “milagre brasileiro”, à conta de desempenho do país – e que depois se viu não refletir exatamente a realidade, tal o endividamento, tal o exagero de realizações mais monumentais do que necessárias.

São desse tempo, já superado, obras faraônicas, a inacabada Transamazônica, e outras tantas, em contraste com a desigualdade e a miséria do povo. Era o tempo do “Brasil Grande”.

Pois bem: o grande advogado, já com sua sensibilidade, percebendo a falácia do pretenso “milagre brasileiro”, fazia, por assim dizer, uma transposição do panorama econômico para o ambiente jurídico-político, afirmando a existência de um outro “milagre”, bem diverso do econômico: o de julgamentos justos em pleno regime de exceção.

Sustentava o ardoroso defensor que a Justiça Militar, qual vencedores julgando vencidos, ela sim, ao fazê-lo, operava verdadeiro milagre, não o econômico – do então Ministro Delfim, ou outro daquela época, com suas estatísticas e demonstrações de resultados –  mas o jurídico, de sorte que ao se julgar fazia-se da lei um escudo, contra o preconceito, a prevenção, a má vontade.

Evaristo, assim agindo, perorando em sua voz de tenor, ocupava a cena, de resto, quase sempre, por escolha de seus colegas que, revelando sensibilidade e reconhecimento, o elegiam para ser o último a falar, e ele o fazia, por assim dizer, em nome de todos, a defesa em uníssono, verberando pela legalidade, pelo Estado de Direito, e desta forma se operava, com sua colaboração decisiva, o “milagre jurídico” – militares, partícipes de alguma forma do movimento de 1964, julgando os perseguidos, fiéis a um juramento, decidindo de acordo com a lei e a prova dos autos, e vinham assim não poucas nem infreqüentes absolvições.

Claro está que não se pretende aqui fazer o panegírico da Justiça Militar – se muito acertou, também muito errou. A rigor, os julgamentos, sejam os dos juízes togados, os do júri, os dos tribunais de apelação, os das Cortes Superiores, carregam sempre a imperfeição humana – daí a possibilidade do erro judiciário, sobre o qual Evaristo proferiu célebre conferência na Pontifícia Universidade Católica do Paraná,  cujo título “Advogado Criminal, esse desconhecido”, fala por si.

Extraia-se, do que disse, o excerto:

“Nada é mais falso do que pensar que o erro judiciário só atinge pessoas de má estrela, pois ele desaba igualmente sobre os afortunados e sobre os humildes”.

Evaristo, em sua manifestação, aludia a René Floriot, que publicou estudo sobre os erros judiciários, remarcando episódios da história, sobre os quais todos devem refletir.

Outra passagem do homenageado, a ser alvo de estudo e meditação pelos advogados de hoje, que devem se espelhar nos de ontem, merece transcrição, sobretudo no momento em que cada vez mais resta incompreendido o papel do defensor, prestigiando-se, de forma emocional, mais do que tudo, os que se encarregam da persecução penal, como se ela fosse sempre justa e infalível, e como se não houvesse sempre o direito de defesa, irrenunciável, um dever da própria coletividade.

Disse Evaristo:

“Em nossos dias, principalmente na defesa dos odiados, o advogado deve empenhar-se com redobrado ardor, para que as garantias legais dos acusados não adormeçam no papel”.

Quantas lembranças, e em todas elas surge a postura, a um só tempo, altiva e modesta de Evaristo de Moraes, que sempre pautou sua conduta por uma fraterna convivência, estimulando os mais novos, neles identificando valores surgentes, abdicando, não só uma vez, de falar por último – dando chance  a quem chegou depois – obrigando o desafortunado a superar-se, o que era impossível, depois da defesa sempre monumental, tal  nossa perene lembrança das sustentações de Evaristo de Moraes,  com sua marca, com seu timbre.

Depois de se ocupar, generosamente, como de seu feitio, da defesa de presos políticos, Evaristo conheceu a incompreensão,  de muitos que antes o aplaudiam, no momento em que se encarregou –  ele que já se desincumbira antes da defesa de outros tantos Presidentes da República – de patrocinar, junto ao Supremo Tribunal Federal, a causa em que figurava como réu o
ex-presidente Fernando Collor, de quem sempre fora adversário político.

Inspirou-se, certamente, no episódio vivido por seu pai, que teve a incumbência de defender Mendes Tavares, correligionário da candidatura de Hermes da Fonseca à Presidência da República, contra Rui Barbosa – este sim, ligado politicamente a Evaristo de Moraes, pai. Ao ensejo, perplexo diante da solicitação, este consultou aquele, o qual, em lição de advocacia escreveu página memorável, referida por nosso homenageado, na conferência que proferiu em 1994 no Estado do Paraná, como mencionado linhas atrás, versando  “O Dever do Advogado”.

O sacerdócio da advocacia foi ensinado por Rui, seguido por Evaristo, o pai, e depois, como todos sabem, pelo filho, o Evaristinho, que tanta saudade deixou, que tanta falta faz, e que inspira, como se presente estivesse, a verdadeira advocacia, a advocacia brasileira, a que não desertou, a que não se curvou, a que continua de pé, reverenciando a memória destes exemplos da profissão invejada por ninguém menos que Voltaire.

Encerramos este escrito, pálido retrato de Evaristo, socorrendo-nos de suas próprias palavras em sua inolvidável conferência, o “Advogado Criminal esse desconhecido”, quando disse, em lição de civismo, sobre nosso ofício:

“Aos que insistem em não reconhecer a importância social e a nobreza de nossa missão, e nos desprezam quando nos lançamos, com redobrado ardor na defesa dos odiados, só lhes peço que, num momento de reflexão, vençam a cegueira dos preconceitos e percebam que o verdadeiro cliente do advogado criminal é a liberdade humana…”

Uma última palavra deve ser dita, rememorando o escrito do pai de Antônio Evaristo de Moraes, em carta endereçada a seu irmão, também Evaristo, que mereceu o título “Falando ao meu filho bacharel”, ocasião em que gizava as vicissitudes da profissão, encantos e desencantos, desencorajando, por assim dizer, o caminho da advocacia, árduo, angustiante, torturante. Repita-se, aqui, a passagem que reflete o contexto que vem de ser assinalado, mirando o mister advocatício, por quem por tanto tempo e com tanto êxito o havia desempenhado:

“Entrei nela, repito, sem título acadêmico e sem proteção de qualquer espécie, tal como você encontra descrito em minhas conhecidas “Reminiscências”.

Não a desonrei – posso afirmá-lo sem receio de desmentido. Por vezes, me orgulhei dela.

Não foi quando obtive aquilo a que, no Foro, chamam “vitórias”. Foi quando pude livremente por a minha palavra e a minha pena ao serviço de vencidos e perseguidos.

Mas nunca deixei de notar o que a advocacia encerra de misérias e angústias.

Destas fiz o pequeno quadro que coloquei diante dos seus olhos.

Bom será que a você aproveite estas lições da vida, afastando-o de uma profissão tão cheia de dissabores.”
(“Reminiscências de um Rábula Criminalista”, pág. 243, Editora Briguiet, 1989).

Hoje, a rigor, depois de sua trajetória profissional, certamente o nosso saudoso Antônio Evaristo de Moraes diria que as misérias e angústias da profissão são, em muito, suplantadas pelo justo orgulho de todos quantos possam ter o privilégio de exercer, com honra e glória, a advocacia, como ele o fez, em toda sua profícua vida de defensor.