Por um Indulto Justo

É da tradição do direito brasileiro a concessão de indulto  e comutação de penas através de decreto presidencial, o qual, de ordinário, tem lugar na época do natal.

Os institutos em referência nem sempre encontram boa acolhida diante da tendência, inspirada em influências alienígenas, de maiores rigores penais, com a exacerbação das sanções.

No entanto, a ninguém é dado desconhecer a situação de nossas prisões. Não é tema sobre o qual se possa polemizar. Elas não atendem sequer às exigências da Constituição do Império, o que não dizer dos reclamos de documentos internacionais que o Brasil subscreveu, comprometendo-se a observar regras mínimas  quanto às pessoas encarceradas.

Não é possível que uma visão reacionária e misoneísta conduza, na evolução da civilização, a uma involução no campo da execução penal.

Na realidade, o que se vem observando, em todo o país – e as recentes rebeliões o testificam – é todo um contexto de inexecução penal, ou de excesso de execução ou de desvio de execução.

Impossível, por conseguinte, sejam alcançadas quaisquer metas de recuperação de presos. É, em última análise, como se o mal da pena acabasse por representar um malefício maior do que o mal do crime.

Desnecessário falar das taxas de reincidência ou das violências no cárcere, enfim, da anomia que caracteriza a realidade de nosso pretenso e imaginário sistema penal.

E tudo isto sem falar dos presos em delegacia policial, já contados aos milhares.
Sensível a tal contexto, o Presidente  da República, recentemente, editou indulto, de caráter condicional, supondo-se, na oportunidade, que muitos seriam, no universo carcerário, beneficiários da medida.

Não foi, no entanto, o que se verificou.

Na verdade, os benefícios acabam sendo, pelas limitações que encerram ou pelas exclusões neles contidas, extremamente ineficazes para minimizar os malefícios da prisonização, a alterar a estrutura mental e psicológica dos encarcerados.

A lei penal cumpre papel seletivo, majorando as reprimendas em face da maior gravidade  das infrações, cabendo ao Juiz, de acordo com a culpabilidade do réu, determinar a pena a ser aplicada.

Todos os internos do sistema penal já foram, a rigor, alcançados pelo juízo de reprovação, maior ou menor, em razão dos respectivos julgamentos.

Assim sendo, sustenta-se – para o efeito da elaboração do decreto anual de indulto – que a medida alcance todo o universo carcerário, sem que se proceda a novo julgamento daqueles que já foram, afinal de contas, julgados.

Se a distinção, quanto às condutas criminais, já se fez no catálogo legal dos delitos, a punir com mais severidade os crimes mais reprováveis, não parece ser conforme o direito, continuar discriminando entre aqueles que receberam, por comportamentos desiguais ou dessemelhantes, penas diferenciadas.

Por tudo isto, diante da constatação de que os benefícios excludentes representam, na prática, duplo julgamento do réu, ou mesmo uma condenação para o resto da vida, sempre fora dos contornos do devido processo legal, garantido pela Constituição, à vista da perspectiva do indulto, usual em nossas tradições, seria de bom uso que não se discriminasse, dentre os atingidos pelas sanções criminais, uns dos outros, até porque as penas que lhes foram aplicadas subordinaram-se, evidentemente, ao princípio da individualização, nos respectivos julgamentos.

Convém, em tais condições, em passo seguinte à medida de indulto condicional, inspirada em propósitos humanitários, mas de parcos resultados, contando-se, no Rio de Janeiro, até o presente momento, apenas duas dezenas de beneficiários, em uma massa carcerária que ultrapassa de 15 mil detidos, dar-se seguimento à louvável iniciativa, contemplando-se, no benefício natalino, quando positivado no decreto de estilo, todas as pessoas que estejam presas no país, desde que satisfaçam aos requisitos de praxe, relacionados com o bom comportamento e o tempo de pena já cumprido.

Colocada desta forma a questão, sem dúvida, muitas das agruras do cárcere serão minimizadas ou até suportadas em razão da perspectiva de reconstrução do ser humano atingido pela pena criminal, que não deve ser pior para a sociedade do que a própria impunidade.

As misérias do processo criminal, vergastadas por Carnellutti, hoje nada mais representam diante da inópia que timbra nosso sistema carcerário, onde vicejam a inexecução, o excesso e o desvio não apenas da sanção cominada abstratamente pela lei, mas sobretudo da própria decisão judicial, agravada pela desumanidade e insensibilidade em sua aplicação.

Nelio Roberto Seidl Machado
Presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro e Advogado Criminal