Entrevista concedida à Revista “Ponto de Vista”

Entrevista com o Advogado Nelio Roberto Seidl Machado

Pergunta: O senhor é advogado civil e criminal?
Advogado Nelio Machado: Eu sou só Advogado Criminal. No início da carreira todos nós somos um pouco “clínicos-gerais”. Eu poderia dizer que nos primeiros cinco anos de advocacia tive alguma experiência fora do Direito Penal, mas sempre com uma concentração muito maior na defesa penal. E na defesa penal, o meu início se deu no Tribunal do Júri – onde fui estagiário – e, sobretudo, nas Auditorias da Justiça Militar, onde eram processados os réus acusados por infrações à Lei de Segurança Nacional. A partir daí, posso dizer que hoje eu advogo de modo ininterrupto há quase 35 anos. E o Direito Penal, de certa forma, cria um vínculo de apaixonamento do profissional por este tipo de matéria, que fica difícil encontrar o mesmo sabor, sem desmerecer, em quaisquer outros ramos do Direito,  eventualmente até mais complexos e mais ricos, no sentido de Doutrina Jurídica. Mas o Direito Penal é a expressão da vida e onde os piores e os melhores se revelam de maneira mais candente. E aí, após provarmos desse mel e, às vezes, desse fel,  não mais nos distanciamos dessa prática no nosso dia-a-dia.

Pergunta: O senhor disse que advogou em Tribunais Militares. Então presumo que tenha vivido no Brasil, os anos de chumbo, os anos da Ditadura. O senhor defendia réus acusados pelo Estado?
Advogado Nelio Machado: Sim, sem dúvida. Meu pai, Lino Machado Filho, recentemente falecido, recebeu homenagem póstuma no Superior Tribunal Militar (há uma sala dos advogados com o nome Lino Machado Filho, como no Supremo Tribunal Federal há uma sala dos advogados chamada Sobral Pinto. Estou me valendo de duas referências, mas poderia citar também outros baluartes da nossa profissão, como Heleno Fragoso e Evaristo de Moraes, entre tantos). Tive o privilégio de conviver com vários profissionais exemplares e eu era o mais jovem, dentre os advogados que se ocuparam da defesa política. Meu pai atuou intensamente logo depois do golpe de 64. Fui trabalhar com ele nos idos de 1971 ou 1972, mas me formei em 1974 e tive a oportunidade de atuar, por exemplo, nos casos dos seqüestros dos embaixadores da Alemanha e da Suíça, Von Hollenben e Giovanni Enrico Bucher.
Na primeira instância eu era um coadjuvante, carregava pastas do meu pai e fazia anotações. Mais adiante, no STM e, principalmente, no Supremo Tribunal Federal, cuidei da defesa de um mineiro já falecido, José Roberto Gonçalves Resende, cujo pai foi desembargador no Estado de Minas Gerais, o saudoso Desembargador Gonçalves Resende. Atuei em diversos lugares do país, defendendo pessoas acusadas de pertencerem ao Partido Comunista do Brasil, à Vanguarda Popular Revolucionária, à Colina, à Rede Armada Nacional-RAN, entre outras tantas agremiações que se insurgiam contra o regime ditatorial.
Enfim, essas inúmeras siglas que correspondiam às posições que tinham divergência com o modelo político instaurado no país, desde aquelas que atuavam em termos de proselitismo político, ou seja, de divergência ideológica e aqueles outros que, a partir do Ato Institucional nº 5 (quando foram suprimidas as garantias básicas da cidadania, notadamente o habeas corpus), optaram pelo caminho da luta armada. No nosso escritório, tivemos alguns presos que foram desaparecidos políticos. O mais notório talvez tenha sido o Deputado Rubens Paiva, cliente de meu pai, mas outros passaram por lá também e, até hoje, não sabemos o destino que tiveram. Isso forjou, de certa forma, uma formação de advocacia combativa e militante. Não diria heróica, mas era uma advocacia em que não podíamos sequer ter medo de ter medo.
Não tínhamos a exata compreensão – pelo menos eu, que era mais jovem – e nem dávamos muita importância àquilo que era uma espada sob nossas cabeças. Sem a garantia do habeas corpus e sem o entendimento do que fosse divergência política ou oposição, o que pudesse ser uma contestação era considerada como ato subversivo ou ato de afronta ao poder constituído ilegitimamente e ilegalmente. Nós tivemos, realmente, um período que você denominou de “anos de chumbo”, que poderíamos chamar também de “anos das trevas”, mas uma realidade que me assusta é que hoje, a despeito da superação do Ato Institucional nº 5 e com a vigência da Carta Constitucional de 5 de outubro de 1988 – que o Deputado Ulysses Guimarães chamou de “Carta Cidadã” –, temos tido violações freqüentes em seus preceitos.
Todos que advogam sabem que seus próprios escritórios, em tese, pela lei e pelos princípios constitucionais, são inexpugnáveis, abrigos da cidadania. Os arquivos da advocacia são invioláveis e nossos contatos com nossos clientes têm que ser reservados. Nem em cadeia de segurança máxima, minha conversa com meu constituinte pode ser objeto de qualquer tipo de monitoramento. E hoje sabemos que, de forma oficiosa as mais das vezes, de forma oficial outras tantas, os advogados têm sido alvo – e mais que os advogados, as pessoas que necessitam deles. Isso fere um princípio de um Estado de Direito que nós lutamos muito para conquistar. O Brasil não tem uma tradição muito intensa de convivência com o oxigênio da democracia, haja vista a nossa história. Se voltarmos ao passado, basta relembrar o Golpe de 1930 e a Ditadura de 1937, que durou até 45. Depois tivemos um período curto de Democracia, o suicídio de Vargas e, pouco depois, toda aquela problemática da posse de Jango, culminando no Movimento de 1964 e os Atos Institucionais nº 1, nº 2, até culminar no AI-5, sem falar na cassação de inúmeros mandatos e na suspensão de direitos políticos de diversas pessoas.
Atualmente, nossa Constituição enumera diversos direitos fundamentais, os quais, porém, não são respeitados e o Judiciário, em certa medida, tem tido postura diametralmente oposta àquela do passado. Durante a repressão política, o Superior Tribunal Militar desempenhou papel extraordinário, sendo um tribunal coerente, correto e independente. Hoje, muitos juízes acreditam que seu papel é combater a criminalidade e não se colocam de forma eqüidistante. Daí formam-se, muitas vezes, verdadeiros “triunviratos de acusação”, compostos por Ministério Público, Polícia e Juiz, todos de mãos dadas trabalhando em prol de uma eficácia repressiva. O  advogado tem dificuldade de acesso à investigação e é tido, por alguns, como alguém que atrapalha o “justiçamento”, o qual é considerado, pelos algozes, mais importante do que o próprio julgamento, o qual pressupõe equilíbrio e isenção.
O advogado é equiparado, pela Constituição, ao Ministério Público, como auxiliar na administração da Justiça. Na realidade, porém, isto não ocorre, porque a investigação é feita com uma metodologia que se assemelha à tortura, abominável e execrável. A prova obtida mediante tortura não tem valor jurídico nenhum, ao passo que hoje, com a mera formalidade de uma concordância judicial, viola-se a intimidade da pessoa e despe-se o cidadão daquela garantia fundamental, segundo a qual a ninguém há de se exigir a auto-incriminação. Quando você fala sem que tenha conhecimento que estão ouvindo, você não tem defesa. Então, na essência, todas as provas que advém da interceptação telefônica têm um quê de inconstitucionalidade e é preciso que, um dia, nossos Tribunais tenham coragem de dizer isso, o que acabará também com a “preguiça” policial.
Investigar mediante interceptação telefônica deveria ser a última alternativa. Ainda assim, teria que ser observado o critério de preponderância de bens jurídicos. Em um caso de extorsão mediante seqüestro com risco de morte, por exemplo, tal método seria tolerável e admissível, avaliando-se, depois, o valor probante dos elementos, para efeito de condenação.
Penso que nas hipóteses de crimes de gravidade menor ou de delitos que possam corresponder a determinadas práticas empresariais que envolvam, por exemplo, uma discussão tributária ou um planejamento fiscal – que todas as empresas, de alguma forma, fazem –, e que não tem, necessariamente, a marca da ilegalidade, essas condutas podem ser combatidas, ainda que ilícitas, sem os rigores do Direito Penal. Há sanções rigorosas e significativas na esfera extrapenal e existem métodos menos invasivos. O mal da cura não pode ser pior que o mal da própria doença.
Creio que estamos vivendo um momento de transformação, mas não necessariamente para melhor. Uma transformação que é pasteurizada, porque lendo a Constituição ficamos todos muito bem impressionados e admirados com o discurso humanitário, mas, muitas das vezes, o que ali se contém é rasgado permanentemente, não raro pelas autoridades que deveriam ser as primeiras a cumprir os mandamentos da nossa Carta Política.

Pergunta: O senhor acaba de explanar sobre um estado de coisas no país, que compromete gravemente as ações da justiça. Foi sob essa mesma ótica, ou com essa mesma argumentação, que o senhor, recentemente, defendeu na Operação Satiagraha o empresário Daniel Dantas?
Advogado Nelio Machado: Sim. Na verdade, eu diria que defendi menos o empresário e muito mais o Estado de Direito. Minha posição sempre foi no sentido do pleno acesso do investigado à investigação. Eu me rebelei contra o fato de que a imprensa sabia e o advogado não. Eu me revoltei contra a circunstância de que o  juiz de primeira instância, diante de um habeas corpus postulado perante um Tribunal, pudesse sustentar a questão do sigilo como um óbice intransponível para a  informação à Corte, quando na verdade existe uma hierarquia. A Lei Maior não conhece amarras nem peias. Não há limitações para o instituto garantidor que é o habeas corpus, cuja doutrina distingue o nosso país – o Estado efetivamente na conformidade das leis.
No Estado Novo não se falava em habeas corpus. No Tribunal de Segurança Nacional e na vigência do AI-5 não se permitia o habeas corpus, mas o STM, na época, conhecia dos pedidos não como habeas corpus, mas como petição ou direito de representação, e isso possibilitava a localização do preso. O acesso ao inquérito, por sua vez, quando remetido à Justiça, era pleno.
O Supremo Tribunal Federal editou recentemente uma súmula, de nº 14, provocada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que sedimentou entendimento que é parcial: afirma-se o direito de acesso ao inquérito para o advogado, mas os precedentes em que se lastreia a súmula afirmam que a autoridade policial pode eventualmente omitir diligências não concluídas.
Eu aprendi, no tempo da Faculdade, com o professor Hélio Tornaghi, eminente processualista, a seguinte lição: “o que não está nos autos, não está no mundo”. Não se pode conceber uma investigação que não seja autuada. E a investigação segue uma cronologia natural. Hoje, com estes expedientes, inventaram um procedimento que a lei não prevê nem contempla, denominados procedimentos criminais diversos. O que é isso? Ninguém sabe, talvez só o Ministério Público e a autoridade policial.
A ação penal prossegue e as interceptações continuam. Hoje já se fala até na criação de “juízes sem rosto”, na medida em que se defende seja formado uma espécie de triunvirato de magistrados de primeira instância para julgar os réus. Eu concordo com o triunvirato ou até com cinco ou sete julgadores, como se dá no Júri, desde que os juízes tenham rosto. O julgamento colegiado, na minha opinião, é uma necessidade imperiosa e indeclinável, na medida em que nós temos uma sistemática processual penal no Brasil que atribui a um só julgador o destino de um semelhante, normalmente muito jovem, que não teve grandes experiências como advogados nem a formação de uma visão humanística da nossa realidade, das nossas desigualdades e da nossa cultura.
E mediante autos que são passados de mão em mão, os autos vão conclusos e acabam tais decisões sendo prolatadas por um juiz, de uma penada só. Houve uma recente modificação, mas para pior, porque fizeram uma adaptação do processo civil ao processo penal, com audiência concentrada, mas uma concentração absurda, porque acaba por mitigar e praticamente inviabilizar o direito de defesa.
Prevalece hoje a idéia de uma Justiça rápida, em contraste com uma Justiça que tarda, mas uma Justiça que seja rápida e leve ao aniquilamento das garantias fundamentais não será Justiça nunca. Melhor que seja lenta, se assim for. Penso que temos que reiniciar uma nova linguagem no Judiciário, a partir da reafirmação integral do direito de defesa, que não pode ser apequenado nem abastardado. E é curioso, porque a Constituição fala em defesa ampla e não em acusação ampla. Se nós admitirmos um paralelismo ou uma simetria, que possa existir uma acusação ampla, a defesa nunca poderá deixar de ser ampla. Hoje, o que se observa, é que a acusação tem poderes irrestritos e nós temos “poderes” mais ou menos simbólicos.
Você se referiu ao empresário de cuja defesa eu vinha me ocupando, o senhor Daniel Dantas. No magnífico voto do Ministro Eros Grau, relator do habeas corpus que consolidou a corretíssima decisão tomada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes – o qual tem exercido função pedagógica sobre a posição que deve assumir a Suprema Corte, que defende também os desvalidos, quando não admite que os réus sejam julgados algemados; quando não tolera a prova ilícita; quando realmente se levanta contra essa prisão indiscriminada, a pretexto de investigações que devem ser feitas primeiramente, mas que deveria corresponder à última resposta da sociedade (se não houver solução mais inteligente do que a prisão, porque a própria prisão é criminógena, traz muito mais malefícios, independentemente do custo) –, referiu o julgador seu sentimento de vislumbrar o absurdo que se traduz na circunstância de um juiz que participou da coleta da prova, que deferiu as escutas telefônicas, que as prorrogou, que dialogou com o Ministério Público e que conversou com a autoridade policial, julgar o réu.
Nas palavras do Ministro Eros Grau, seria mais ou menos como se o magistrado dissesse assim “eu já lhe conheço, eu já investiguei toda a sua vida, eu já sei tudo sobre seus passos, sobre suas andanças e eu já tenho a minha convicção de que o senhor é culpado. Mas agora o senhor tem uma chance de, em alguns minutos, me convencer que eu estou errado”.
Essa é, hoje, a inaceitável estrutura do processo penal brasileiro. Nenhum país do mundo permite que o chamado Juiz de Instrução julgue a causa. Hoje nós temos juízes que são policiais por algum lado, Ministério Público por outro, perdendo a isenção. Eu perderia também. Não estou criticando nenhum juiz, estou apenas dizendo que é não é razoável supor que alguém não seja influenciável em tais circunstâncias.
O mesmo se diga do Ministério Público, porque a Constituição diz que a investigação cabe privativamente à Polícia Civil, no âmbito estadual, e à Polícia Federal, nas causas de competência federal. O regramento sobre o Ministério Público está lá nos artigos 127, 128 e 129. Sobre o advogado está no artigo 133 e seguintes. Tudo muito claro. Mas às vezes interpretam a lei de forma completamente enviesada e surge outro problema: o Ministério Público, em uma situação dessas, perde também a isenção para a valoração da investigação, porque é partícipe dela. Então, acaba existindo o que eu costumo chamar de “triunvirato acusatório”. A polícia investiga, com o aval do Ministério Público e com a concordância do Juiz. E o réu se apequena e fica totalmente acuado. O que esse réu pode fazer?
Daí porque hoje, cada vez mais, é necessária a atuação dos Tribunais Superiores. Alguns dizem que existem muitos recursos no Brasil. Eu digo que não. Isso se tornou uma necessidade, em função da forma como se faz o julgamento em primeiro grau. Os tribunais, também locais, acabam, de alguma forma, querendo prestigiar o juiz de primeira instância. E os juízes mais prestigiados são exatamente aqueles que mais condenam. Os juizes mais liberais são quase que amaldiçoados, sobre eles levanta-se até o véu da suspeita, o que é um absurdo. Juiz não é nem a favor da acusação nem a favor da defesa. Juiz é juiz. Juiz é magistrado. Juiz não tem parcialidade, o que não significa que ele não tenha sua posição humana. Não fica “encastelado”, mas tem que por freios aos seus desejos.
Qualquer um de nós, em uma cidade grande ou em uma cidade pequena, de forma direta ou indireta, já se deparou com a violência e com a criminalidade, mas isso não significa que se deva fazer um discurso medieval, que se deva defender penas exageradas e excessivas. Temos que voltar àquelas lições que vêm do iluminismo, da pena proporcional, da pena quando necessária em relação aos réus perigosos e àqueles que afrontam a incolumidade pública. Outros que tenham eventualmente transgredido a lei podem ser submetidos a soluções fora do direito penal ou mesmo a penas alternativas ou substitutivos penais, medidas  despenalizadoras ou descriminalizantes, com ganho social muito maior.
Não é construir cadeias, mas construir escolas. Escolas onde sejam oferecidas condições de competitividade. Não é elaborar legislação com cotas sociais, por condição de cor, mas estabelecendo que as pessoas tenham uma paridade maior. E a idéia do falecido Leonel Brizola, gostando-se dele ou não, dos CIEP’s. Ensino integral é o que se faz no primeiro mundo. Tempo para estudar, tempo para se divertir, tempo para se alimentar, tempo para cuidar da saúde e, com isso, a criminalidade certamente diminuirá. Não é algemando ou fotografando e colocando a foto na primeira página do jornal. Não é a sociedade “esculachando” a pessoa, reduzindo sua dignidade à sua mais completa abstração, abastardando-se sua dignidade, premissa do nosso texto constitucional.
Houve um Juiz em Minas Gerais, salvo engano em Contagem, que foi punido pelo Tribunal, porque mandou soltar presos em condições desumanas, quando, na verdade, o que ele fez foi cumprir a lei. Dom João VI, no tempo do Império, dizia que as cadeias deviam ser limpas e arejadas. Esse mandamento que remonta à Carta Constitucional de 1824, não tem vigência em 2009, porque as cadeias são depósitos humanos. E depois vamos querer que estas pessoas saiam do cárcere melhores do que quando entraram? Isso é impossível, isso não vai acontecer.
E os juízes são muito jovens, talvez se devesse exigir um tempo maior de experiência. Nada de preconceito contra o jovem, temos que ter o espírito da juventude permanente em nós mesmos. O advogado que perde a juventude perde a condição de advogar e no dia que perder seu inconformismo, ele já não é advogado.
Muitos juízes tornam-se conservadores, mas o bom juiz é aquele que tem uma perspectiva de mudança para melhor, que não se põe na linha do lugar comum, no vozerio da multidão. A multidão, vendo Jesus Cristo crucificado, praticamente não fez coisa nenhuma. Nós tivemos erros históricos incríveis, em que a multidão exigia o que há de pior. Temos que ter postura que resulte de uma visão finalística, conseqüente, e que não seja apenas para atender essa satisfação. Dizem que no Brasil, os crimes prescrevem, mas não é verdade. Os prazos prescricionais são  muito longos. Com as novas mudanças da lei, cada vez mais se terá menos prescrição e se os mandados de prisão fossem todos cumpridos a situação seria muito mais caótica.
Paradoxalmente, se nós imaginarmos muita gente que deveria estar solta mas que está na cadeia e muita gente em liberdade, mas que não teve o mandado de prisão cumprido, a situação estaria mais ou menos igual. Há muitos soltos que têm ordem de prisão quanto presos que já poderiam, até por cumprimento de tempo suficiente, estar em liberdade. E mais, no Rio de Janeiro e em outros estados do nosso país, vê-se, de ordinário, que quem executa a pena não é o juiz que julgou a causa. No cível é diferente. No contrato descumprido, quem depois vai exigir o cumprimento é o juiz que cuidou da ação de conhecimento. O réu é julgado por um magistrado que o conheceu, mas depois se afasta daquele ser humano. E aquele condenado se transforma em um nome em uma folha de papel. Qual o trabalho de ressocialização? Eu sei que é difícil ressocializar, que quase nunca se consegue, que as taxas de reincidência no Brasil e no exterior são muito altas. Mas isso não significa que a gente não deva ter uma utopia dentro de nós. E a utopia, como diz Eduardo Galeano, a gente busca dando um passo à frente. Se ela se afasta mais, damos um outro passo e assim por diante, até alcançá-la. Possivelmente, por ser utopia, nunca alcançaremos, mas temos que ter a imagem utópica como um norte na nossa vida, na nossa passagem pela Terra.

Pergunta: O senhor falou dos erros de se ouvir, muitas vezes, a multidão que clama injustamente. Tem erros históricos constatados a esse respeito. Há poucos dias, provavelmente um mês, o país inteiro assistiu a uma cena deplorável, quando um juiz do Supremo solicitou ao outro que fosse às ruas, exatamente no intuito de que “ouça o que as pessoas dizem”. O que o senhor acha desse fato lastimável, da discussão do Ministro Gilmar Mendes com o Ministro Joaquim Barbosa? Em que situação o Judiciário se encontra de modernização e de mudança?
Advogado Nelio Machado: Em primeiro lugar, juízes em Tribunais eventualmente divergem e eventualmente discutem; advogados com membros do Ministério e assim por diante. É claro que a temperatura não deve subir a um ponto que não seja conveniente. Nesse caso, na minha ótica de advogado, me identifico muito mais, como cidadão e como profissional do Direito, com a postura do Ministro Gilmar Mendes, que tem sido um defensor intransigente dos princípios básicos da Carta “Cidadã”. E o Ministro Joaquim Barbosa, a partir de decisão tomada no caso que se identificou como “mensalão”, cultivou, de certa forma, essa idéia de Justiça popular e populista, que é um equívoco. Penso até que quando o magistrado envereda por esse caminho perde a condição de ser julgador.
Nesse episódio, acho que, realmente, o Ministro Joaquim não foi feliz, tanto que recebeu, de certa forma, uma espécie de reprimenda, ainda que suave, dos seus pares, que endossaram a postura do Presidente da Corte. É preciso que o juiz, no STF ou fora dele, tenha limitações em relação à onisciência ou onipotência, evitando-se que a vaidade se exacerbe de forma tal, de modo a que venha a se tornar uma espécie de censor da conduta alheia. O Supremo Tribunal Federal é um órgão colegiado e por ser um órgão colegiado estimula a divergência. No dia em que não houver divergência, é evidente que o Tribunal Colegiado perde a razão de ser. É natural também que existam ministros mais liberais e outros mais conservadores, até porque se todos tivessem o mesmo perfil o Tribunal não representaria a realidade multifacetada da própria sociedade, que se projeta naquela Corte.
No episódio, o que houve foi uma censura de um Ministro em relação a outro. Uma censura descabida, que gerou uma revolta do Presidente, que em tom ríspido redarguiu. Depois houve também desdobramentos, mas acredito que a posição mais inteligente em relação a esse episódio, para o bem do país, é evitar que isso se repita, para que o Poder Judiciário seja respeitado na sua tarefa maior, que é a de julgar com isenção e sem paixão. Ali houve um apaixonamento na fala inteiramente fora dos parâmetros judiciários do Ministro Joaquim Barbosa, quando disse ao Presidente da Corte “vá às ruas”. Não penso que o juiz tem que ir às ruas. Quem tem que ir às ruas são os deputados e os senadores para buscar votos. Juiz não busca votos no nosso sistema. Quanto mais o Ministro estiver no seu Gabinete, lendo a sua literatura, melhor. Ir ao cinema, apreciar a vida, tudo bem, mas sentir o eco, com a repercussão da sua voz, passeando pelas ruas da cidade, medindo aplausos ou apupos, isso não é razoável.
O que também me espanta é que, muitas vezes, pessoas sem maiores esclarecimentos aplaudem, de forma inconsciente, as posições mais retrógradas e mais reacionárias, esquecendo-se de uma frase do Ministro Marco Aurélio: “o chicote muda de mãos”. A lei não foi feita para nos garantir ou garantir o nosso amigo. Ela existe para garantir também o nosso inimigo, se é que temos algum.
Creio que, nesse episódio, ficou marcada uma posição de não isenção por parte do Ministro Joaquim Barbosa. E o Ministro Gilmar Mendes também pode ter tido uma reação calorosa, porque, como já dizia Nelson Hungria, “o homem não é um lago de águas paralisadas. Nós somos animais de sangue quente”. Evidente que se formos espezinhados e cutucados, a tendência é reagir. Já existiram outras rusgas no Supremo Tribunal Federal, mas não existia a TV Justiça. Talvez seja o caso até de se repensar. É muito difícil dizer até que ponto a TV Justiça é positiva ou negativa, porque, de alguma forma, qualquer episódio passa a ter uma repercussão desmedida. E outras Cortes do mundo, como por exemplo, na Suprema Corte Americana, cujo modelo em larga medida foi seguido pelo nosso país, as sessões são secretas e o advogado nem assiste (não estou sustentando isso e prefiro o nosso sistema). Mas o televisionamento das sessões do Supremo Tribunal Federal é confortável: é bom para os advogados, é bom para o cidadão, mas isso às vezes estimula uma tendência talvez de falar um pouco mais do que se devia – o mundo hoje virou o mundo da notoriedade e da celebridade e todo mundo tem um quê de novela das oito, de apelo cinematográfico e isso é um defeito da condição humana. A vaidade, por si só, leva a alguns equívocos muito graves.